Emma Valle foi uma artista que nunca se encaixou nas classificações convencionais. Ao longo de seus 67 anos, a soteropolitana desafiou rótulos e viveu à margem dos circuitos formais da arte, com produções que, mesmo décadas depois, continuam a inquietar e fascinar. Agora, 25 anos após sua morte, sua força criativa é celebrada a partir da exposição Emma Valle na Coleção de Dimitri Ganzelevitch, inaugurada na última terça-feira (6), na Aliança Francesa de Salvador.A mostra, que segue em cartaz até 1º de junho, apresenta cerca de 30 obras de Emma, parte de um acervo pessoal colecionado pelo galerista francês Dimitri Ganzelevitch, radicado na Bahia há quase 50 anos. Com curadoria do próprio Ganzelevitch, a exposição traz telas, azulejos, talhas, objetos entalhados e suportes diversos que compõem o universo particular de Emma.A exposição representa uma tentativa de reinscrever Emma Valle na história da arte baiana, após anos sem uma mostra da artista. Emma faleceu em 2000 e tem ganhado nova atenção nos últimos tempos.Segundo Ganzelevitch, isso reflete também uma movimentação típica do mercado de arte. “O mercado está sempre em busca de pérolas esquecidas. Vasculham, remexem até encontrar alguém que tenha sido injustamente apagado. Emma é um desses casos. Ela começa agora a ressurgir com força, e é hora de as pessoas conhecerem ou encontrarem sua obra”, defende o curador.Na exposição, estão peças protagonizadas por orixás, santos, burgueses, barcos e cenas do cotidiano na cidade. Inicialmente, o acervo selecionado incluía obras tridimensionais que ficaram de fora devido a limitações do espaço expositivo. “Algumas dessas esculturas exigiam estruturas específicas, pedestais e maior segurança. Como a sala da Aliança é também um espaço de passagem, optei por manter apenas as que podiam ser penduradas na parede, para garantir uma boa circulação do público”, explica o curador.Referência artísticaNascida e falecida em Salvador, Emma Valle é um exemplo raro da chamada arte fora das normas, ou outsider art. A produção dela se alinha a criadores como os artistas da Art Brut, conceito cunhado por Jean Dubuffet para definir a arte criada por indivíduos que não são influenciados pela tradição artística oficial, incluindo artistas autodidatas, pacientes psiquiátricos, e outros que se encontram fora do circuito artístico mainstream. Ou aos internos de Nise da Silveira, mas com um tempero inconfundivelmente baiano, entre o tropical, o urbano e o afrobarroco.Ganzelevitch, que coleciona obras de Emma desde a década de 1970 e pôde conviver com ela, afirma que a artista nunca buscou reconhecimento acadêmico ou inserção institucional. “Ela não estava preocupada em agradar. Não queria seduzir o público, nem seguir padrões. Ela se expressava a partir de uma necessidade visceral, de dentro para fora”, descreve.Esse impulso criativo pode ser percebido nos detalhes das obras: títulos extensos, assinaturas múltiplas, datas repetidas à exaustão, e, por vezes, até o valor da peça escrito diretamente sobre a tela. A artista, segundo o curador, narrava mundos a partir do que lhe cercava, transformando objetos cotidianos em matéria poética. Seu ateliê improvisado ficava na pensão Cartola Internacional, na Ladeira de Santa Teresa, onde conviveu com artistas como Reinaldo Eckenberger.Apesar da convivência, Emma nunca integrou coletivos ou movimentos. Criou sozinha, à margem, o que, para Ganzelevitch, é um sinal de autenticidade. “Um bom artista tem um mundo próprio. E o mundo de Emma não se parecia com nenhum outro. Era dela, só dela”.Com a mudança para uma nova casa, o galerista viu a oportunidade de reorganizar seu acervo e decidiu montar a exposição como forma de celebrar uma marca pessoal: em maio, ele completa 50 anos vivendo na Bahia. “Cheguei aqui em 21 de maio de 1975. Quis marcar a data com algo especial. A exposição foi a melhor maneira que encontrei de fazer isso”, conta.A abertura, na última terça-feira, contou com coquetel e um debate que reuniu o professor Luiz Freire, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o psicanalista Genilson Brito e o próprio curador.O encontro, segundo Dimitri, foi enriquecedor e atraiu um bom público, apesar da chuva que ameaçou cair durante o dia, mas deu trégua até a noite. “Esses encontros são importantes para resgatar e contextualizar o trabalho de artistas como Emma. Ela foi muito apreciada por outros artistas, o que é um forte indicativo de sua qualidade. Quando a classe reconhece, é porque há algo de potente ali”, diz.Apesar de não se considerar o principal responsável pela preservação do legado de Emma Valle, Ganzelevitch é hoje uma das figuras mais ativas na tentativa de manter sua memória viva. “Com certeza há outras pessoas que também a valorizam. Mas eu continuo fazendo o que posso para que sua produção não seja esquecida”, finaliza o curador.”Emma Valle na coleção de Dimitri Ganzelevitch” / Até 1º de junho, de segunda a sexta-feira, das 8h às 21h; sábado, das 8h30 às 12h30 / Aliança Francesa (Ladeira da Barra) / Entrada gratuita*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
Fonte: atarde.com.br